DO CICLISTA AO CICLOTURISTA


DO CICLISTA AO CICLOTURISTA

Matéria publicada na REVISTA BICICLETA – Edição 44 – setembro/2014


Outro dia falamos sobre os encontros que tivemos com outros cicloturistas. Às vezes fico imaginando quais características nos fazem reconhecer um cicloturista. Claro que em Ladakh é fácil, mas como seria em nosso dia a dia?

Como comentei no outro artigo, os equipamentos podem mostrar um pouco da cultura e da personalidade do cicloturista. Algo que podemos perceber no Brasil é que muitos cicloturistas descendem do mountain bike, afinal, no geral, para viajar de bicicleta alguém terá que treinar e já estar capacitado a pedalar por horas e horas, ou seja, já existe um ciclista capacitado antes de um cicloturista de primeira viagem.

Baseando-se nos princípios de agilidade de uma competição, quem já se acostumou a usar uma mochila de hidratação começa sua primeira pequena viagem carregando todo o equipamento da mesma forma, ou seja, todo o peso extra é colocado no local onde o equilíbrio é mais comprometido. Além de aquecer e machucar as costas, o peso da mochila é integralmente transferido para o corpo, que por sua vez passa para o ponto onde fica apoiado na bicicleta, ou seja, a já tão sofrida parte “sentante” sofre mais ainda. Geralmente todo este sofrimento costuma ensinar rapidamente aos ciclistas que não é bom carregar nada nas costas.

Como em cada mudança existe sempre um coeficiente de rejeição, fica sempre algum resíduo do que era antes, que o ciclista ainda não quer deixar para trás. Na primeira viagem tem sempre alguém que, quando comprou o quadro, nem sabia que deveria ter pontos de fixação para futuramente colocar um bagageiro, ou pior, comprou um quadro com suspensão traseira que impede a fixação de bagageiro. De longe poderá reconhecer este cicloturista, pois seu bagageiro é pequeno e está preso no canote de selim. Já ouvi falar de muitos bagageiros destes que quebraram, no entanto, pode ser uma solução razoavelmente eficiente para quem viaja com carro de apoio ou em regiões de clima bom, com facilidades pelo caminho, que suprime a necessidade de carregar muito equipamento.

Conforme aumenta o tamanho da viagem, aumenta a necessidade de carregar água, e podemos ver surgir suportes de caramanholas extras por todos os lados ou outras formas alternativas de carregá-la.

Pode-se observar em um ciclista, com o tempo de viagem, a tendência de ir deixando os uniformes característicos de competições para usar roupas do dia a dia, a fim de misturar-se melhor com a gente do caminho.

Muitos que viajam de bicicleta pela primeira vez tornam-se viciados logo na primeira dose. Começam a planejar novas viagens compulsivamente, assim como compram todo tipo de equipamento “necessário”.

Um mecânico hábil pode fazer furação em um quadro ou instalar um bagageiro de uma forma adaptada sem grandes prejuízos, desde que não seja muito solicitado em uma grande viagem.

Bem, agora com o bagageiro traseiro instalado, o ciclista já encontra mais espaço e confiança, logo instala um par de alforjes, que nada mais são que bolsas idênticas colocadas nos dois lados do bagageiro para ajudar no equilíbrio do conjunto e manter o peso da bagagem mais próximo do centro de gravidade da bicicleta, o ponto onde está o movimento central.

Será que já observou como são grandes os pratos em restaurante por quilo? Com um prato grande o faturamento aumenta, pois cobram por quilo e o cliente tem sempre a tendência de encher o prato, seja qual for o tamanho, independente da fome. Da mesma forma, vendo aquele espaço vazio em cima do bagageiro, o cicloturista não resiste ao convite para preenchê-lo.

Alguns acham que o bagageiro traseiro é pouco e instalam um bagageiro sobre a roda dianteira, colocam um alforje e às vezes até algo mais na parte de cima. Isso sem falar na maravilhosa “bolsa de guidão”. Nada é mais característico em um cicloturista que uma bolsa de guidão, um verdadeiro símbolo, um sonho de consumo.

Ganhei minha primeira bolsa de um amigo espanhol em Pamplona. Muito básica, nada mais era que uma simples bolsa amarrada no guidão através de fitas, sem qualquer estrutura ou sustentação. Não importava, estava feliz com ela e pedalei até os Estados Unidos, quando comprei uma de verdade, que está até hoje na bicicleta exposta no Museu da Bicicleta de Joinville.

A bolsa de guidão fica suspensa longe de qualquer parte rígida da bicicleta e mesmo que a bike chacoalhe, objetos delicados dentro dela estarão protegidos. Sua outra função deriva do poder que tem de ser rapidamente destacável da bicicleta. Costumamos carregar nela documentos e dinheiro, mantendo-a sempre conosco. Nem sei quantas vezes fomos reconhecidos ou reconhecemos cicloturistas, mesmo sem bicicleta, simplesmente por levarem a tiracolo uma bolsa de guidão. É sempre uma festa, pois a gente cumprimenta na certeza, não há como errar, é mais certo do que ver uma marca de queimado de sol no meio da coxa.

Sem muita experiência, mesmo os melhores técnicos em planejamento costumam levar coisas a mais. Recebemos muitos e-mails de cicloturistas contando que superestimaram as necessidades da viagem quando carregaram a bicicleta. A Rafaela, antes de me conhecer, logo no segundo dia de viagem pelo Caminho da Fé, despachou quase todo seu equipamento de volta para casa, com alforje e tudo, manteve somente uma pequena mochila embrulhada em um plástico e presa no bagageiro.

Quando comecei a volta ao mundo, uma bicicleta cheia de bagagem me fascinava. Parecia que quanto mais bagagem maior seria a aventura. Pouco a pouco fui reduzindo o que carregava para um “somente o essencial”, mais “essencial” que antes. O tempo de viagem me mostrou necessidades diferentes das que eu imaginava e acabei chegando a nossa configuração atual. Para reduzir o equipamento, mais que uma busca de melhor eficiência nas pedaladas, faz parte do aprendizado maior que uma viagem de bicicleta pode dar, o desapego e a simplicidade. Às vezes o melhor é carregar isso ou aquilo a mais, nem que seja só por precaução. Entretanto, às vezes a evolução passa por um “deixar para trás”, por um “não possuir”, por um “tomar um risco” de não ter e perceber que nem faz falta. Às vezes, menos é mais. Tentamos, sempre que possível, trazer este aprendizado para nosso dia a dia fora das viagens.

A carga na bicicleta é a maneira pela qual os cicloturistas são reconhecidos, sem ela somos ciclistas normais. No dia que cheguei de bicicleta em Paris fui direto para a Torre Eiffel e cinco parisienses formaram uma roda para falar comigo, parecia uma coletiva de imprensa. No outro dia, sem carga, ninguém nem me cumprimentava pelas ruas da mesma cidade.

Ilustração – Revista Bicicleta – edição 44

Como não há regras, não temos como saber em que “fase evolutiva” um cicloturista está. Será que ele errou no cálculo? Será que ele está indo para um lugar muito distante e difícil? Também pode ser um minimalista do tipo “roots”? Será que já passou por aqueles lugares que sonhou ir um dia?

Existe uma forma simples de saber. Basta ir até ele e perguntar. Este é o grande serviço que a bicicleta carregada faz, atrai as pessoas dos lugares para vir conversar com o viajante de uma forma especialmente compulsiva e carismática.

Se prestarmos atenção, em sua retórica, reconhecemos o grau de conhecimento do cicloturista. Mais que os altos números dos quilômetros da viagem ou de países visitados, em suas histórias podemos perceber sua sabedoria. Mais que os feitos, busque os aprendizados que teve: é sempre gratificante parar para conversar com um cicloturista, pois ele tem experiências de vida para nos contar.


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