DESISTIR X EXISTIR

DESISTIR X EXISTIR


(artigo publicado na REVISTA BICICLETA – Edição 37 – fevereiro/ 2014)


Quando conto que fiz uma volta ao mundo de bicicleta, cada um compreende uma coisa diferente. Tem gente que pergunta se fiquei muito cansado… Como se tivesse feito uma grande travessia ininterrupta pedalando todo tempo como numa maratona. Às vezes me perguntam se nunca pensei em desistir. Nesse momento vem em minha mente uma das piores fases da viagem, pedalar pela Alemanha no inverno. Cada um tem uma fraqueza, algo que tem dificuldade, não foram grandes montanhas nem o frio ou o calor intenso que me baixaram o moral. Quanto pedalei na Alemanha era época de Natal, meu aniversário, o primeiro Natal fora de minha casa (venho de uma festiva família de sete filhos). O clima não poderia ser pior, todos os dias eram nublados, chuvosos e frios, não dava nem gosto de tirar a máquina fotográfica. Este clima terrível também determina o caráter dos habitantes do lugar.

Quem visita a Bavária no verão sente o quanto os alemães são festivos, mas no inverno a coisa muda e notava a frieza do clima transmitir-se para as pessoas. Pedalava ao lado do rio Reno e quase não encontrava lugar para acampar, numa tarde começou a chover forte e acabei ficando embaixo de uma ponte férrea, escura e úmida. O dia é curto, às cinco da tarde já começava a escurecer, só sai daquele túnel no outro dia. Foi a pior noite da viagem, pois ao contrário do que imaginava, os trens não param de passar dia e noite. Estava exausto, e começava a perder o sentido do que fazia. Com todas estas dificuldades poderia simplesmente puxar a passagem aérea de volta que estava em meu bolso e terminar todo o suplício. Poderia desistir e voltar para curtir o verão brasileiro. Entretanto, isto não me passava pela mente.

Existem pessoas que dizem que quando tem que fazer algo difícil é importante traçar metas, objetivos, ter determinação, fazer um planejamento detalhado…. Todas estas palavras me soam fortes demais. Quando sai do Brasil planejei ficar um ano viajando pela Europa, abdiquei de tudo o que conquistara para viver um grande sonho de viagem. Ao tentar realizar meu grande sonho já conquistara muito mais do que a maioria das pessoas que ficam toda uma vida sonhando e nem mesmo tentam concretizar.

Não tive patrocínio, nem um projeto formal, portanto era livre para fazer o que quisesse, por isso imagino que desistir não seria uma palavra correta para descrever uma suposta volta ao Brasil nesta fase. Se eu não tinha objetivo claro, não teria como desistir de algo que nem existia. Quero dizer, meu objetivo era viver a viagem e isso não teria como ser diferente, pois eu estava lá vivendo…

Mais que “desistir” da viagem eu “existia” nela. Se percebesse que a viagem já não me valia a pena poderia simplesmente “existir” de outra forma, por isso acho desistir uma palavra com pouca aplicabilidade.

Acabei percebendo que as dificuldades são muito parecidas. Frio, calor, esgotamento físico, falta de dinheiro, de compreensão, saudade, solidão, e muitas outras coisas são dificuldades que se apresentam em nosso caminho.

Ora, via de regra, acredito que seja qual for a dificuldade que se apresente à nossa frente, é por que podemos sobrepô-la e continuar caminhando, desde que estejamos em nosso caminho verdadeiro. Quando a dificuldade parece impossível de vencer, algo está errado em nossa percepção, geralmente isso ocorre nos momentos em que estamos exaustos ou desequilibrados, daí os problemas viram monstros gigantescos, se tentarmos desviar eles crescem ainda mais. Dar um passo atrás, descansar, se recompor e se reequilibrar nos torna mais fortes para enfrentar qualquer situação. Muitas vezes não é força e sim a paciência. Uma volta ao mundo de bicicleta é uma tarefa longa, a cada dia temos que estar preparados para enfrentar novos problemas e desafios, nunca sabemos exatamente o que nos espera.

Como nasci em um país tropical queria ver neve caindo, por isso fiquei na Europa no inverno, contrariando todos os conselhos. Cometi um erro e estava pagando o preço, só isso. Devido a várias circunstancias acabei conseguindo um local para descansar por um tempo. Fiquei dois meses parado esperando o clima melhorar mas, afinal, descobri que o clima na Alemanha é ruim a maior parte do ano. Recomposto, decidi continuar pedalando mesmo assim e segui em direção ao sul, em busca de sol.

Atravessei os Alpes com neve, mas quando cheguei na Itália a primavera me esperava com seu colorido mágico e percebi que tudo se renova e temos a chance de recomeçar, com mais força e mais experiência.

Até hoje quando saio para uma grande viagem de bicicleta sinto que a cada dia acordo mais forte e equilibrado graças ao exercício constante. O que não consegui fazer no dia anterior, tenho a oportunidade de fazer hoje com mais força e alegria.

Lembro sempre de uma velha música do Raul Seixas:
“aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo
O que eu quero eu vou conseguir” (Rockixe)


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