A LIBERDADE EM DUAS RODAS

“A Liberdade em Duas Rodas” | matéria publicada na REVISTA ECOTURISMO TERRA em julho de 1999. Trajeto de Caeté a Ouro Preto, passando pelo PE Caraça.


Entre Caeté e Ouro Preto, em Minas Gerais, um roteiro ciclístico atravessa cidades históricas, serras e vales, para chegar ao berço da Independência do Brasil.

As estradas que hoje ligam Caeté a Ouro Preto, em Minas Gerais, nasceram como picadas abertas pelos primeiros bandeirantes que desbravaram o sertão. Por elas passaram a opulência dos senhores das minas e a miséria dos escravos. Elas testemunharam insurreições, o esplendor da arte barroca e os primeiros gritos de liberdade contra a Coroa portuguesa. Conhecer de bicicleta os 157 quilômetros que cruzam as montanhas e as cidades históricas mineiras é experimentar a liberdade em meio à natureza, enquanto se mergulha nesse período dourado e heroico da História do Brasil.

Poucas regiões do Brasil unem tanta beleza natural, história e maravilhas da arte brasileira. Aventurar-se sobre uma bicicleta partindo da pequena Caetité, próxima a Belo Horizonte, até Ouro Preto significa passar pelo mesmo cenário em que paulistas e portugueses lutaram pelo ouro durante a Guerra dos Emboabas, descobrir ruínas em minas dos tempos coloniais, circundar a impactante Serra do Caraça para chegar, por fim, a um dos maiores patrimônios históricos da humanidade. Mas é, também, atravessar serras e vales que ainda preservam trechos intocados da Mata Atlântica e do Cerrado.
Nesse pedaço verdejante de Minas Gerais, onde eclodiu a Inconfidência Mineira no século XVII, a bicicleta é um aliado perfeito para fazer o passeio. Ela proporciona velocidade maior do que a das carroças e cavalos que um dia transitaram por aquelas estradas, mas permite um rodar mais natural do que os modernos automóveis, despertando a mente para a contemplação.

Pedalar rápido não é o importante nesse roteiro. Tampouco atingir logo o destino final. O que conta mesmo é observar cada detalhe do caminho, sentindo-se livre para descansar e fazer o percurso de acordo com a resistência física, já que o trajeto de dois dias não é fácil.

Vá dentro do seu limite e tenha sempre boa reserva de água potável. Não há necessidade de fazer a viagem em dois dias. Se estiver cansado, acampe nos locais indicados no mapa ou durma nas cidades do caminho.

O ponto de partida é a pequena Caeté, fundada em 1701 por causa das ricas jazidas de ouro na região. A cidade foi palco da disputa entre portugueses e brasileiros pelas minas de ouro que deu origem à Guerra dos Emboabas, em 1708, vencida pelos brasileiros. E é justamente na Praça dos Emboabas, erguida para lembrar o confronto histórico, que se deve zerar o odômetro para dar início ao primeiro dia de viagem.

No primeiro dia de viagem, no trecho que vai de Caeté a Barão de Cocais, a paisagem é tipicamente caipira: muitas pastagens, pequenos sítios de subsistência e estradinhas de terra sinuosas. Mas as montanhas ao fundo indicam um percurso cheio de subidas.

Logo na saída de Caeté, em meio ao cenário bucólico de sítios com cultivos de subsistência e umas poucas cabeças de gado, a inclinação da estrada aumenta gradativamente, revelando que o percurso vai ser puxado. À medida que se pedala, as árvores nativas abrem espaço para milhares de eucaliptos das áreas de reflorestamento patrocinado pelas empresas mineradoras que atuam nessa região. Não mais em busca do outro, porém. As crateras abertas nas montanhas serem para extrair o minério de ferro. Mas a bela paisagem continua a resistir: o horizonte exibe uma sucessão de serras e montanhas que parecem nunca acabar.

O silêncio é quase total. A corrente da bicicleta deslizando suavemente pelas catracas e coroas e os pneus nas pedras são os únicos sons que se ouvem durante uma íngreme subida. No desejo de vencer o obstáculo, a equalização do ritmo das pedaladas com os ruídos da bicicleta parece transformar-se num envolvente mantra. No topo da serra, a vista panorâmica recompensa o esforço: as cores intensas das árvores, dos arbustos e das pequenas flores selvagens misturam-se aos vários tons das montanhas à frente.

Mas esse êxtase não dura muito tempo. Após uma grande descida, chega-se à Mina do Congo Soco, onde caminhões sobem e descem velozmente a estrada, levantando poeira e espalhando o pó do minério por todos os lados.

Na saída há uma bica d’água à beira da estrada. A água não é própria para consumo, entretanto garante um banho refrescante antes de explorar as ruínas de casas seculares próximas dali. De tão danificadas, não há como identificar se eram moradia de senhores ou de escravos. Grossas paredes feitas de pedra e grandes alicerces mostram a robustez das construções que resistem às explosões da mina e ao tráfego constante dos pesados caminhões.

Salame ou mortadela?

O roteiro continua e passa pela Vila do Congo Soco, onde vivem os trabalhadores da mina. Seis quilômetros adiante chega-se a Barão de Cocais. Na entrada da cidade fica o Bar do Adão, simpático comerciante que vende um prosaico sanduíche de pão com salame. Porque, a despeito de Adão garantir que é salame, na verdade trata-se de pão com mortadela. O lugar é típico do interior de Minas Gerais: uma mistura de bar com lanchonete, padaria e mercearia. Imagens de santos em estantes enferrujadas, teias de aranha nos cantos das paredes e imensa tranquilidade mostram que a vida nesse lugar parece ter parado no tempo em que Barão de Cocais era habitada por ricos senhores. Prova disso são alguns trechos intactos do calçamento de pedra, construído por escravos, que a cidade conserva até hoje.

A partir de Barão de Cocais, a estrada bem conservada facilita o acesso até o trevo para Santa Bárbara, onde se pega uma estrada vicinal rumo ao famoso Mosteiro do Caraça, que fica no Parque Estadual do Caraça. Crianças brincam à beira da pista cercada de Mata Atlântica, driblando a bola entre cachorros que dormem indiferentes ao burburinho da molecada. Esse ponto é ideal para decidir se o melhor é acampar às margens da lagoa próxima da Pousada Pico do Sol, dormir na pousada ou prosseguir até o Caraça, onde os monges costumam acolher os visitantes. Se a escolha recair sobre a última opção, prepare o espírito e o fôlego para o que está por vir.

Do Portal do Caraça até o mosteiro sobe-se 515 metros em pouco mais de 10 quilômetros. É um trecho um tanto puxado. A impressão que se tem é que a estrada nunca vai acabar. Se a marcha mais leve da bicicleta ainda assim parecer muito dura, a melhor alternativa, então, vai ser empurrá-la até o topo. Um fantástico visual marca o final do primeiro dia de viagem: a igreja de arquitetura neogótica, junto ao Mosteiro do Caraça, banhada pelo lusco-fusco do entardecer.

No segundo dia, o trajeto com destino a Ouro Preto começa no entroncamento de Santa Bárbara. Mesmo com maior trecho asfaltado, o percurso a partir daqui é ainda mais difícil que no dia anterior, por ser longo e ter subidas muito íngremes nos últimos quilômetros. A maior atração surge nas primeiras pedaladas, quando se circunda a Serra do Caraça. O sol da manhã bate sobre a serra e a faz brilhar como se fosse um gigante de metal. Nos flanco, mata virgem, repleta de árvores nobres como peroba e jacarandá. A paisagem exuberante e as boas condições do asfalto compensam o sobe-e-desce contínuo do caminho que parece não ter fim.

A estrada de terra ressurge um pouco mais à frente, à medida que a Serra do Caraça vai ficando para trás. Pequenos aclives e declives marcam os 13 quilômetros seguintes e, após uma grande descida, chega-se a uma lagoa. O local pode servir para camping selvagem a quem preferir uma parada estratégica, deixando para visitar Mariana no dia seguinte. Para tomar banho, basta ir até a bica à esquerda da rodovia.

Depois do trevo para a cidadezinha de Antônio Pereira já se avistam, no horizonte, os esboços do casario antigo e as torres das igrejas de Marina. Na cidade fundada em 1696, um rico patrimônio arquitetônico barroco serve de aquecimento visual para o que se vai encontrar em Ouro Preto. Aproveite para descansar, porque os 18 quilômetros que separam Mariana da antiga capital mineira são muito puxados.

Nem mesmo o acostamento bem conservado alivia o esforço empregado para vencer as íngremes subidas, que parecem intermináveis. Passe direto pela primeira entrada de Ouro Preto, pois o segundo trevo conduz ao centro. As ladeiras e os paralelepípedos do calçamento roubam a energia que resta do cicloturista… O pedalar fica mais lento e a tranquilidade com que se percorre as ruas dá a sensação de voltar no tempo, de estar na mesma época em que ali se conspirava em favor da liberdade. O monumento a Tiradentes, na praça central da cidade, marca o final da viagem. Pronto. Desligue o odômetro. Daqui em diante, reserve uns dias para conhecer as igrejas e os monumentos que fizeram de Ouro Preto Patrimônio Histórico da Humanidade.


Saiba mais sobre os trajetos da ESTRADA REAL:
 CAMINHO VELHO e CAMINHO DOS DIAMANTES.


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Veja as páginas originais da revista Ecoturismo Terra, onde foi publicada a matéria “A Liberdade em Duas Rodas” (se desejar, clique nas imagens e salve-as em seu aparelho):


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