SOROCHE | O MAL DE ALTITUDE

Laguna Jankho Khota (4582 msnm), aos pés do Nevado Huayna Potosi, Bolívia

SOROCHE, O MAL DE ALTITUDE

(matéria publicada na REVISTA BICICLETA impressa – Edição 70 – janeiro/ fevereiro de 2017)


Em nossos circuitos de viagem gostamos de passar por montanhas. Parece-nos divertido, pois apesar do esforço, as mudanças de clima e paisagem tornam a viagem mais dinâmica.

soroche o mal de altitude

Atravessamos várias grandes cordilheiras pelo mundo e nunca tivemos tantos problemas com altitude como em nossa última viagem pelo Altiplano. Não há uma droga que iniba a altitude, a melhor dica para evitar problemas é subir lentamente e tentar dormir no local mais baixo que conseguir. A bicicleta, com sua velocidade natural, sempre nos proporcionou a aclimatação no tamanho certo. No alto, sentíamos reações diferentes, mas nada que um pouco de calma e um analgésico não pudessem resolver.

Ao contrário, a viagem pelo Altiplano começou no aeroporto de La Paz, a quase quatro mil metros de altitude. Nosso costume é montar as bicicletas no próprio aeroporto e sair pedalando, entretanto, de antemão sabíamos que seria algo extenuante e arriscado demais.

Descemos do avião e lentamente passamos pela alfandega e imigração. Cerca de dez metros depois da porta de saída para o saguão já paramos para nos sentar e descansar… Recobrado o fôlego, fui comprar algo para comer e beber em um quiosque a cerca de 30 metros de distância. Estávamos pedalando quatro horas por dia para treinar para esta dura viagem e tive que parar para descansar na ida e na volta do quiosque. Enquanto comíamos, vimos umas meninas que estavam em nosso voo serem levadas para receber oxigênio, elas não conseguiram nem sair do aeroporto.

Um taxi nos levou para a pousada que deveria estar a cerca de 3500 metros de altitude e lá ficamos estatelados. Devido a algumas conexões malucas, dormimos mal na noite anterior e apesar do cansaço não foi fácil pegar no sono. A respiração ofegante impedia que relaxássemos, quando conseguíamos, logo vinha uma compulsiva e profunda inflada de pulmão, como alguém que está sendo retirado do afogamento.

Nossa pousada estava reservada para dois dias e mesmo fazendo caminhadas pela cidade continuávamos muito fracos para começar viagem. Tivemos que ficar mais um dia e sair na outra manhã. Saímos nos arrastando, fazendo médias diárias ínfimas e terminávamos os dias exaustos.

Mas por que isso acontece? Como podemos minimizar o efeito da altitude, o soroche?

As moléculas de oxigênio estão misturadas no ar por todo lado em porcentagem parecida. Ao nível do mar o peso de todos os gases da atmosfera comprime as moléculas de oxigênio, de forma que a cada vez que inflamos nosso pulmão entra uma quantidade de oxigênio a qual estamos habituados. Conforme ganhamos altitude, por volta dos 2500 a 3000 metros, a pressão de todos os gases da atmosfera diminui e por consequência a pressão realizada sobre as moléculas de oxigênio também diminui, sendo assim, com menor pressão, elas aumentam seu volume. Ou seja, a cada vez que você infla o pulmão cabem menos moléculas de oxigênio dentro dele. A oferta gasosa ocorrida no pulmão fica diminuída e os sintomas do soroche são, em sua maioria, as reações de seu corpo para remediar o problema:

  • Respiração rápida e profunda: com a pouca oferta de oxigênio, o corpo tenta aumentar o volume de ar para captar mais oxigênio.
  • Taquicardia: o sangue é o veículo para o oxigênio se mover do pulmão para as células. Existe um tipo de sonda lambda (quimiorreceptor) perto do coração que mede a quantidade de oxigênio no sangue. Quando está pobre demais, ela manda um sinal para aumentar os batimentos cardíacos a fim de melhorar a eficiência do sistema, aumentando a velocidade do sangue em seu caminho entre o pulmão e a célula.
  • Dor de cabeça: O cérebro é o órgão mais importante do corpo e ele tenta se preservar, trazendo para si mais sangue para compensar a falta de oxigênio, o que aumenta a pressão na caixa craniana, causando dor.
  • Fraqueza: o oxigênio atua no movimento muscular como em um carro a explosão, sem ele, seus movimentos ficam fracos, sem potência, como se tampasse a entrada do filtro de ar de um carro. A demanda de oxigênio exigida pelo exercício não será atendida e se sentirá fraco como um velhinho destreinado.
  • Desidratação: Com o aumento da quantidade de trocas gasosas perdemos mais líquido através do vapor de água que sai pelo pulmão.

Estas confusões físico-químicas ainda podem causar desarranjos intestinais, enjoos, tonturas, insônia e hemorragia nasal.

Não há como saber sua reação antes de passar por esta experiência, cada um reage de forma diferente à altitude, não há regra. Um fortão pode se sentir pior que um fracote, mas uma pessoa bem treinada se sentirá melhor que se estivesse menos treinada, o treinamento físico é a melhor preparação.

soroche o mal de altitude

Não estávamos aclimatados em três dias, só estávamos um pouco acostumados. A aclimatação só ocorre quando seu corpo consegue aumentar a quantidade de hemoglobina no sangue (responsável pelo transporte de gases entre pulmão e células), e isso só ocorrerá em semanas. Não se preocupe, você nunca será como um local, eles são o resultado genético de uma longa aclimatação, é só observar o tamanho da caixa torácica de um boliviano.

O altiplano no inverno é muito seco e isso só piora a propensão à desidratação. Nesta última viagem aprendemos algo que nos trouxe muito conforto.

Água é o que há de comum em todos os tipos de respiração (branquial, cutânea e pulmonar), com o ar extremamente seco as narinas, que costumam ser um meio úmido, secam rapidamente. Como reação o corpo secreta mais umidade na região, que novamente seca rapidamente. Este processo logo bloqueia sua respiração, que já não está eficiente. Limpar as narinas na altitude é uma operação delicada, pois já estamos propensos à hemorragia nasal. Várias vezes ao dia tivemos que gastar um pouco de nossa preciosa água para este procedimento.

soroche o mal de altitude

Desde nossa viagem para Ladakh (Tibete Indiano), víamos pessoas usando máscara cirúrgica em seu dia a dia, a princípio imaginamos que seria pela poeira. No altiplano nos acostumamos a dormir com estas máscaras. Claro que ela constrange ainda mais a entrada de oxigênio, mas deixamos entreaberta, pois sua função era manter quente esta região que fica fora do saco de dormir e manter a umidade dispersada pelo pulmão nas vias respiratórias. O sistema funcionou perfeitamente para nós, nunca mais tivemos hemorragia nasal nem tivemos que retirar verdadeiros “aliens” de nossas narinas todas as manhãs.

Nossa ideia aqui não é atemorizar, uma vez na região de altitude a calma será sua grande aliada. Sabendo as causas as reações de seu corpo, poderá melhor compreender seus sentimentos e, de forma mais consciente, testar seus novos limites. Ver belezas e participar de acontecimentos são riquezas de uma viagem, sentir estranhas reações em seu corpo são para nós igualmente interessantes e gratificantes. Só sabe de verdade quem passa por uma região assim.

Um agradecimento especial aos médicos de nossa família, Dr. Jorge Ferreira Filho e Dra. Marina Abud Ferreira, pela consultoria na elaboração deste texto.


Muitas outras histórias e dicas para viajar pelo Altiplano e Cordilheira dos Andes, estão no livro digital “Entre Salares e Desertos, Montanhas e Vulcões”.



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Para ouvir mais histórias sobre como reagimos ao ar rarefeito, como nos preparamos para pedalar na altitude e como fazemos para nos aclimatar, assista ao vídeo:


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