SOROCHE | O MAL DE ALTITUDE

SOROCHE, O MAL DE ALTITUDE
(matéria publicada na REVISTA BICICLETA impressa – Edição 70 – janeiro/ fevereiro de 2017)
Em nossos circuitos de viagem gostamos de passar por montanhas. Parece-nos divertido, pois apesar do esforço, as mudanças de clima e paisagem tornam a viagem mais dinâmica.

Atravessamos várias grandes cordilheiras pelo mundo e nunca tivemos tantos problemas com altitude como em nossa última viagem pelo Altiplano. Não há uma droga que iniba a altitude, a melhor dica para evitar problemas é subir lentamente e tentar dormir no local mais baixo que conseguir. A bicicleta, com sua velocidade natural, sempre nos proporcionou a aclimatação no tamanho certo. No alto, sentíamos reações diferentes, mas nada que um pouco de calma e um analgésico não pudessem resolver.
Ao contrário, a viagem pelo Altiplano começou no aeroporto de La Paz, a quase quatro mil metros de altitude. Nosso costume é montar as bicicletas no próprio aeroporto e sair pedalando, entretanto, de antemão sabíamos que seria algo extenuante e arriscado demais.
Descemos do avião e lentamente passamos pela alfandega e imigração. Cerca de dez metros depois da porta de saída para o saguão já paramos para nos sentar e descansar… Recobrado o fôlego, fui comprar algo para comer e beber em um quiosque a cerca de 30 metros de distância. Estávamos pedalando quatro horas por dia para treinar para esta dura viagem e tive que parar para descansar na ida e na volta do quiosque. Enquanto comíamos, vimos umas meninas que estavam em nosso voo serem levadas para receber oxigênio, elas não conseguiram nem sair do aeroporto.
Um taxi nos levou para a pousada que deveria estar a cerca de 3500 metros de altitude e lá ficamos estatelados. Devido a algumas conexões malucas, dormimos mal na noite anterior e apesar do cansaço não foi fácil pegar no sono. A respiração ofegante impedia que relaxássemos, quando conseguíamos, logo vinha uma compulsiva e profunda inflada de pulmão, como alguém que está sendo retirado do afogamento.
Nossa pousada estava reservada para dois dias e mesmo fazendo caminhadas pela cidade continuávamos muito fracos para começar viagem. Tivemos que ficar mais um dia e sair na outra manhã. Saímos nos arrastando, fazendo médias diárias ínfimas e terminávamos os dias exaustos.
Mas por que isso acontece? Como podemos minimizar o efeito da altitude, o soroche?

As moléculas de oxigênio estão misturadas no ar por todo lado em porcentagem parecida. Ao nível do mar o peso de todos os gases da atmosfera comprime as moléculas de oxigênio, de forma que a cada vez que inflamos nosso pulmão entra uma quantidade de oxigênio a qual estamos habituados. Conforme ganhamos altitude, por volta dos 2500 a 3000 metros, a pressão de todos os gases da atmosfera diminui e por consequência a pressão realizada sobre as moléculas de oxigênio também diminui, sendo assim, com menor pressão, elas aumentam seu volume. Ou seja, a cada vez que você infla o pulmão cabem menos moléculas de oxigênio dentro dele. A oferta gasosa ocorrida no pulmão fica diminuída e os sintomas do soroche são, em sua maioria, as reações de seu corpo para remediar o problema:
- Respiração rápida e profunda: com a pouca oferta de oxigênio, o corpo tenta aumentar o volume de ar para captar mais oxigênio.
- Taquicardia: o sangue é o veículo para o oxigênio se mover do pulmão para as células. Existe um tipo de sonda lambda (quimiorreceptor) perto do coração que mede a quantidade de oxigênio no sangue. Quando está pobre demais, ela manda um sinal para aumentar os batimentos cardíacos a fim de melhorar a eficiência do sistema, aumentando a velocidade do sangue em seu caminho entre o pulmão e a célula.
- Dor de cabeça: O cérebro é o órgão mais importante do corpo e ele tenta se preservar, trazendo para si mais sangue para compensar a falta de oxigênio, o que aumenta a pressão na caixa craniana, causando dor.
- Fraqueza: o oxigênio atua no movimento muscular como em um carro a explosão, sem ele, seus movimentos ficam fracos, sem potência, como se tampasse a entrada do filtro de ar de um carro. A demanda de oxigênio exigida pelo exercício não será atendida e se sentirá fraco como um velhinho destreinado.
- Desidratação: Com o aumento da quantidade de trocas gasosas perdemos mais líquido através do vapor de água que sai pelo pulmão.
Estas confusões físico-químicas ainda podem causar desarranjos intestinais, enjoos, tonturas, insônia e hemorragia nasal.
Não há como saber sua reação antes de passar por esta experiência, cada um reage de forma diferente à altitude, não há regra. Um fortão pode se sentir pior que um fracote, mas uma pessoa bem treinada se sentirá melhor que se estivesse menos treinada, o treinamento físico é a melhor preparação.

Não estávamos aclimatados em três dias, só estávamos um pouco acostumados. A aclimatação só ocorre quando seu corpo consegue aumentar a quantidade de hemoglobina no sangue (responsável pelo transporte de gases entre pulmão e células), e isso só ocorrerá em semanas. Não se preocupe, você nunca será como um local, eles são o resultado genético de uma longa aclimatação, é só observar o tamanho da caixa torácica de um boliviano.
O altiplano no inverno é muito seco e isso só piora a propensão à desidratação. Nesta última viagem aprendemos algo que nos trouxe muito conforto.
Água é o que há de comum em todos os tipos de respiração (branquial, cutânea e pulmonar), com o ar extremamente seco as narinas, que costumam ser um meio úmido, secam rapidamente. Como reação o corpo secreta mais umidade na região, que novamente seca rapidamente. Este processo logo bloqueia sua respiração, que já não está eficiente. Limpar as narinas na altitude é uma operação delicada, pois já estamos propensos à hemorragia nasal. Várias vezes ao dia tivemos que gastar um pouco de nossa preciosa água para este procedimento.

Desde nossa viagem para Ladakh (Tibete Indiano), víamos pessoas usando máscara cirúrgica em seu dia a dia, a princípio imaginamos que seria pela poeira. No altiplano nos acostumamos a dormir com estas máscaras. Claro que ela constrange ainda mais a entrada de oxigênio, mas deixamos entreaberta, pois sua função era manter quente esta região que fica fora do saco de dormir e manter a umidade dispersada pelo pulmão nas vias respiratórias. O sistema funcionou perfeitamente para nós, nunca mais tivemos hemorragia nasal nem tivemos que retirar verdadeiros “aliens” de nossas narinas todas as manhãs.
Nossa ideia aqui não é atemorizar, uma vez na região de altitude a calma será sua grande aliada. Sabendo as causas as reações de seu corpo, poderá melhor compreender seus sentimentos e, de forma mais consciente, testar seus novos limites. Ver belezas e participar de acontecimentos são riquezas de uma viagem, sentir estranhas reações em seu corpo são para nós igualmente interessantes e gratificantes. Só sabe de verdade quem passa por uma região assim.
Um agradecimento especial aos médicos de nossa família, Dr. Jorge Ferreira Filho e Dra. Marina Abud Ferreira, pela consultoria na elaboração deste texto.
Muitas outras histórias e dicas para viajar pelo Altiplano e Cordilheira dos Andes, estão no livro digital “Entre Salares e Desertos, Montanhas e Vulcões”.
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Para ouvir mais histórias sobre como reagimos ao ar rarefeito, como nos preparamos para pedalar na altitude e como fazemos para nos aclimatar, assista ao vídeo:
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