ENTREVISTA | VIAGEM DE BICICLETA PELO IRÃ

Entrevista: Antonio Olinto e Rafaela Asprino, sobre a viagem de bicicleta pelo Irã

Por Janaina Elias, do Blog Chá-de-Lima da Pérsia

Entrevista: Antonio Olinto e Rafaela Asprino sobre a Viagem de Bicicleta pelo Irã - blog Chá-de-Lima da Pérsia

Salam amigos! Hoje trago para vocês uma surpresa muito especial: quando o assunto é viajar para o Irã, muitos brasileiros, ainda tem muitas inseguranças e temores, gerados principalmente por informações equivocadas a respeito deste país. Felizmente, esta visão está a cada dia mais sendo modificada, seja pelo crescente aumento do turismo na região e também pela divulgação de fontes de informação de qualidade que vem quebrando estereótipos negativos sobre o Irã e seu povo.

Há mais de 20 anos, o casal paulista Antonio Olinto e Rafaela Asprino desenvolve um projeto para divulgar o cicloturismo no Brasil em suas várias vertentes, o Projeto de Cicloturismo no Brasil. Além da edição de guias de cicloturismo dentro do território nacional, o casal produz livros e documentários de qualidade sobre viagens de aventura de bicicleta em várias regiões do mundo. Em 2017 eles embarcaram em uma jornada surpreendente pelo Oriente Médio, passando pelo Irã!

Com muita alegria, compartilho com os leitores, esta belíssima entrevista cedida gentilmente por Antonio e Rafaela especialmente para o Chá-de-Lima da Pérsia!


O que os levou a escolha deste roteiro, quais cidades percorreram e quantos dias durou a jornada?

O Olinto já vinha cultivando o sonho de viajar pelo Irã desde que fez a volta ao mundo em bicicleta (entre 1993 a 1996). A falta de informações sobre a possibilidade de atravessar o Oriente Médio em bicicleta fez com que ele optasse em seguir por outros caminhos naquela época.  Nós nos conhecemos e passamos a viajar juntos em 2007. Em 2013, durante uma viagem pela região de Ladakh, nos Himalaias (norte da Índia), conhecemos o italiano Roberto Rineri. Ele é um apaixonado pelo Irã, já visitou o país 12 vezes, todas elas em meio a grandes travessias de moto, da Europa até a Ásia. A partir de então o sonho antigo do Olinto passou a ser meu também, e começamos a pesquisar sobre como seria fazer uma viagem de bicicleta pelo Irã.

Nós entramos e saímos do Irã por fronteiras terrestres com a Turquia. A entrada foi por Gurbulak-Bazargan, no dia 06/08/2017, e a saída por Kapikoy-Razi no dia 07/10/2017, no total foram 2 meses de viagem e cerca de 2760km pedalados pelas seguintes províncias: Azerbaijão Oeste e Leste, Zanjan, Isfahan, Fars, Yazd, Semnan e Mazandaran.

Nessa viagem fizemos em média 60km por dia. Com a bicicleta, viajamos em uma velocidade natural e precisamos visitar os povoados do caminho, seja para conseguir comida, água, ou lugar para dormir. Sendo assim, mais que os lugares turísticos, temos a possibilidade de conhecer a realidade do modo de vida das pessoas comuns.

Mapa da viagem de bicicleta pelo Oriente Médio - "Os Filhos da Estrada", viagem de bicicleta pelo Irã
Mapa da viagem de bicicleta pelo Oriente Médio

O trajeto completo da nossa viagem pode ser visualizado clicando aqui: TRACKLOG DA VIAGEM DE BICICLETA PELO ORIENTE MÉDIO


Como foi o planejamento da viagem Irã e quais foram as fontes de informação que buscaram sobre o Irã?

Em primeiro lugar, começamos a pesquisar sobre visto, tempo de permanência, qual seria a melhor forma de entrar e sair do país e preço de passagens aéreas. Claro, também passamos a sonhar com os lugares que gostaríamos de visitar, marcando no mapa cada ponto, que no final, acabou definindo o roteiro da viagem.

Tivemos a sorte de ter a assessoria do Roberto, que nos mandou um ótimo mapa de estradas do Irã, com distâncias em km e nomes das cidades em inglês. Foi ele quem nos deu a maior parte das dicas importantes para quem viaja de bicicleta, como as características das estradas e a excelente qualidade da água, por exemplo.

Ele contou sobre sua experiência com visto e renovação, mas ele é italiano, então nós precisávamos entender como seria para os brasileiros. Em nossas pesquisas na internet, o blog Chá-de-Lima da Pérsia logo apareceu para sanar várias dúvidas a esse respeito, fornecendo informações importantes que nos deixaram mais confiantes. Ficamos gratos por encontrar tanto conteúdo de qualidade concentrado em um único blog, ainda mais em português!

Viagem de bicicleta pelo Irã, registrando o Deserto de Kavir, no coração do país.
Registrando o Deserto de Kavir, no coração do país.

Quais eram os maiores receios a respeito do Irã e ao final o que mudou com relação a visão de vocês sobre o país?

O nosso maior receio era a respeito da proibição de mulheres pedalarem em público. O outro receio era de não conseguirmos renovar o visto e termos que sair correndo do país.

Logo na fronteira nossa visão mudou. Como estrangeiros, nem precisamos ficar na fila, fomos levados a uma sala especial, com sofás, mapas, fotos dos pontos turísticos, e uma bela moça que nos atendeu e carimbou nosso passaporte com um grande sorriso de boas-vindas. Ela já nos orientou sobre o valor do câmbio, disse que o Irã era um país muito seguro, poderíamos trocar o dinheiro nas casas de câmbio, ou então com os senhores que ficam do lado de fora da aduana. No Irã não existe dinheiro falso, disse ela…

A segunda quebra de paradigma foi na renovação do visto; no nosso imaginário, os oficiais iriam fazer um inquérito, e teríamos que explicar muito bem os motivos da nossa solicitação. Ao chegar no prédio da Polícia de Imigração em Yazd, fomos recebidos por um oficial do alto escalão. Sorridente, ele mesmo fez todos os trâmites e ao final nos ofereceu chá e doces. As únicas perguntas que tivemos que responder foram suas curiosidades sobre viajar de bicicleta. Antes de irmos embora ele nos perguntou por que estávamos tão tensos… nos entreolhamos e não pudemos mais dar uma resposta que fizesse sentido…

Uma informação importante que ele nos deu: o visto solicitado através do consulado é renovável por até 6x. Já o visto que se faz na chegada do aeroporto só será renovado em casos especiais.

Viagem de bicicleta pelo Irã, oásis em meio ao deserto

Como foi, especialmente para Rafaela, viajar de bicicleta pelo Irã, um país onde as mulheres são proibidas de pedalar em público, tendo que seguir o código de vestimenta islâmico?

A viagem de bicicleta por si só aumenta a interação com a população local. No caso do Irã, essa característica é potencializada pelo fato de serem muito receptivos com os turistas. Na verdade, de todos os países que conhecemos, o Irã conquistou o primeiro lugar na receptividade e amabilidade do povo. Em momento algum eu tive problemas por ser mulher e estar pedalando. Essa proibição existe, é incomum ver mulheres iranianas pedalando nas ruas, só vimos algumas em Isfahan e em Tabriz. O que nos disseram é que agora é um momento de relaxamento, inclusive do hijab. Nas cidades maiores vimos as moças mostrando grande parte dos cabelos, colocam apenas uma faixa de tecido simulando o véu.

Compreendemos que o governo de uma nação nem sempre reflete seu povo. Durante a viagem, você quase nunca se relaciona com o governo, e sim com as pessoas comuns.

Um fato interessante sobre o código de vestimenta islâmico é que ele existe tanto para mulheres quanto para homens. Antes mesmo de entrar no Irã, eu absorvi completamente a ideia de viajar coberta, e não tive qualquer problema. Já o Olinto, no segundo dia no país, se esqueceu e saiu de bermuda, pois fazia muito calor. Não demorou muito e um comerciante veio até nós, sugeriu que ele colocasse uma calça, pois se a polícia o visse poderia chamá-lo para a delegacia.

Claro, eu tinha que me preocupar em prender bem o véu para que ele não saísse da cabeça com o vento. Por outro lado, pedalar o dia todo com um pano enrolado no pescoço muitas vezes foi desconfortável, ainda mais considerando que viajamos em pleno verão. Mas isso não teve relevância alguma diante das experiências que pudemos viver no país.

Viagem de bicicleta pelo Irã - Recebendo o carinho das mulheres iranianas.
Recebendo o carinho das mulheres iranianas.

Quais foram as maiores dificuldades da viagem de bicicleta pelo Irã e como foram superadas?  

A primeira dificuldade foi a nossa própria ignorância e preconceito com relação ao Oriente Médio. Claro que confiamos nas palavras do Roberto, nas dicas do blog e de alguns outros amigos que já tinham viajado pelo Irã, mas ficava aquela dúvida de como seria a nossa própria experiência. Ter o coração aberto para encontrar as similaridades e aprender com as diferenças é um caminho para ter a coragem de se lançar ao desconhecido.

Outra grande dificuldade foi viajar no verão. Escolhemos esse período para poder carregar menos equipamento, pois o inverno nessa região é muito rigoroso. Essa dificuldade foi superada com a estratégia de pedalar nos horários mais frescos do dia, e nos horários mais quentes, procurar um abrigo na sombra. Isso nos permitiu conviver muito com as pessoas.

Viagem de bicicleta pelo Irã - Descanso no caravanserai de Saghand.
Descanso no caravanserai de Saghand.

Quais foram os melhores e mais agradáveis momentos da viagem? Que impressões vocês tiveram sobre o povo iraniano?

Foram tantos que fica até difícil descrever! Visitamos cerca de 15 Patrimônios da UNESCO, conhecemos a milenar arquitetura persa que permite a vida em regiões desérticas até hoje, e várias formações naturais como montanhas, salares, desertos e represas de travertino. Mas nenhum monumento histórico ou natural pôde superar a alegria que é ser bem recebido e amado quando estamos viajando em terras distantes. Os iranianos são muito carinhosos! A cada encontro era como se estivéssemos chegando para visitar aquele parente distante, que sabíamos que existia, mas que nunca tivemos oportunidade de conhecer. Não é à toa que colocamos o nome de nossa viagem de “Os Filhos da Estrada”.

Viagem de bicicleta pelo Irã - A bicicleta nos trouxe próximos ao povo mais acolhedor que já vimos.
A bicicleta nos trouxe próximos ao povo mais acolhedor que já vimos.

O que experimentaram no Irã que foi uma experiência única, diferente dos outros países que já conheceram?

O calor, o frio e as subidas são desafios presumíveis em uma viagem de bicicleta, mas quando estávamos saindo do Irã experimentamos outro tipo de dor: a melancolia e a saudade desse povo tão especialmente acolhedor nos fez sair do país com lágrimas nos olhos… era como se estivéssemos deixando uma parte de nós mesmos para trás. Todos os dias da viagem, sem exceção, os iranianos vinham nos entregar alguma coisa para comer, beber, ou mesmo um presente, como uma pulseira ou um perfume. Em uma dessas ocasiões, presenciamos um pai comprar pepinos para que o filho nos entregasse, perpetuando a generosidade através das gerações. Essas atitudes são tocantes e não se passa por elas sem aprender alguma coisa.

Viagem de bicicleta pelo Irã - Muito educados e gentis, praticamente todos os dias ganhávamos alguma coisa das pessoas.

Após estas experiências o que vocês diriam para aqueles que desejam viajar para o Irã?

Diríamos apenas para irem! Que vejam com seus olhos e sintam com seu próprio ser o que o mundo é.

A quantidade excessiva de informação na internet e nas mídias em geral nos dá a falsa impressão de que podemos saber da realidade do mundo através de uma tela. Nós acreditamos que saber sobre o mundo é viver o mundo, e não apenas observá-lo através de filtros que outros colocam.


Como tem sido a recepção do público sobre o recém lançado documentário Os Filhos da Estrada

A recepção do público tem sido excelente! Estamos muito felizes pois percebemos que as pessoas estão compreendendo a mensagem que queremos passar através do documentário. Existem muitos mitos que rondam a região do Oriente Médio e a atuação dos nossos irmãos muçulmanos. No geral temos pouco conhecimento sobre a religiosidade islâmica, e essa ignorância nos faz assumir como verdade os estereótipos divulgados pelos meios de comunicação em massa. Com nosso documentário esperamos ajudar a construir uma visão mais humana e real.


O documentário “Ibn al-Sabil – Os Filhos da Estrada: uma surpreendente jornada de bicicleta por Turquia e Irã” está sendo publicado em formato de uma websérie com 16 capítulos em nosso canal do YouTube. No 8º capítulo entramos no Irã, mas sugerimos que aqueles que queiram entender mais profundamente os conceitos que queremos transmitir, assistam desde o começo, em especial o capítulo 02 e o capítulo 04, onde comentamos sobre os preceitos religiosos que acabam direcionando a forma de atuar das pessoas.


Links sugeridos para os leitores do Blog:

Capítulo 08, onde entramos no Irã

Playlist com os capítulos disponíveis

Nosso Canal de Ciclourismo no YouTube

Mais informações, fotos e textos sobre a viagem pelo Irã

Para quem quiser saber sobre Cicloturismo (viagem de bicicleta) sugerimos um passeio por nosso site, a partir deste texto

Para se aprofundar no assunto, sugerimos a leitura do livro “No Guidão da Liberdade”, sobre a volta ao mundo em bicicleta

Lista de todos os livros e documentários produzidos por nós


Gratidão, Rafaela e Antonio, por gentilmente compartilharem sua incrível experiência com os leitores do Chá-de-Lima da Pérsia!

Nós é que agradecemos a oportunidade de apresentar o universo do cicloturismo aos leitores do blog, e ficamos à disposição! Caso tenham perguntas ou observações sobre nossa viagem de bicicleta pelo Irã, comentem por aqui, ou nos escrevam diretamente em nosso Canal de Cicloturismo no YouTube ou site!