PASSOS PATAGÔNICOS ǀ A VIAGEM
É interessante pensar que para mim é mais perto ir para a Cordilheira dos Andes que para Aracaju. Aracaju tem um sabor de férias tradicionais e de recreação mas os Andes me soam como aventura.
Saí de Ipaussu dia 20/10/05 à noite e de ônibus rumo a Foz do Iguaçu. Montei a bike na rodoviária, atravessei a fronteira, desmontei a bike na cidade de Puerto Iguazu, primeira cidade da Argentina. Neste local é possível conseguir passagens mais baratas e direto para Mendoza. Trinta horas depois chegava em Mendoza, já ao lado da Cordilheira.
Em Mendoza, pela primeira vez, me disseram que os passos estavam fechados devido à enorme quantidade de neve que caiu no inverno passado. Saí pedalando da Rodoviária ainda desacostumado com o estilo de vida em bike. É estranho viver com tão pouco e estar assim tão vulnerável depois de algum tempo sob o conforto e a segurança que me oferece o motor home. Acho que os primeiros dias ajudaram a me reabituar.
Perto de Mendoza há muitas propriedades produtoras de frutas, alho e é claro vinho. A 90 km do centro da cidade ainda me recusavam um lugar para acampar. No segundo dia percebi que outubro é muito cedo para começar uma viagem como esta, fazia frio e para piorar, começou a chover. Me abriguei em um ponto de ônibus até que terminasse a chuva. Sentia frio e o vento só piorava as coisas. Pedalei um pouco mais e vi uma casa que tinha muito espaço coberto nos fundos. Parecia garagens. Parei e pedi para colocar minha barraca sob a cobertura e passar a noite. Que surpresa tive!
Na casa haviam nove jovens dançarinos de musica folclórica argentina e estavam para começar seu ensaio. Como me senti feliz por estar ali quentinho, seco e assistindo um espetáculo daqueles. Nunca imaginei que a dança folclórica era tão popular. Chacarera, Gato, Zamba, Pollito, Malambo,…. Franco, o instrutor, me mostrava todos os detalhes que as diferenciavam.
Fiquei imaginando toda a seqüência de acontecimentos que me levaram a travar este contato com esta gente tão boa! Provavelmente se não estivesse de bike e se não estivesse frio e chovendo eu teria simplesmente passado direto pela vila de Chilecito. Ou seja, os mesmos fatores que me levaram a praguejar há pouco tempo me levaram a ter esta experiência especial que me enchia de satisfação. Depois disto me senti de volta ao espírito do cicloturista, livre e feliz com tudo que o caminho me oferece. Acabei ficando uns dois dias com eles e nos despedimos com lágrimas nos olhos esperando um reencontro algum dia.
Não via a hora de deixar o asfalto e entrar nas pequenas e tortuosas estradas secundárias de “ripio” (cascalho e/ou leito natural). Em Pareditas continuei reto e entrei na estrada de terra pela “Carretera 101” o caminho mais perto da Cordilheira. Realmente, como num passe de mágica o tráfego desapareceu e eu tinha os buracos da pista só para mim. De vez em quando via uma casinha de pastores com uma fonte de água ao lado. Tudo ia bem até que uma placa me fez acreditar que estava quase chegando e acabei afrouxando meus cuidados, nem me preocupei em pegar água no rio Diamante e segui rumo a Sosneado. Subi, subi muito e a região se tornava cada vez mais seca. Duas motos de cross vinham atrás de mim, eram os únicos veículos que vira durante o dia todo. Os motociclistas eram policiais de Bardas Blancas e estavam de folga. Eles me informaram que viram um sítio há alguns quilômetros atrás morro abaixo. Disseram ainda que iria começar uma região muito seca e deserta mas que lá na frente poderia encontrar algo.
Costumo dizer que não volto atrás nem para pegar impulso, mas antes tivesse quebrado esta regra… Pedalei toda a tarde até as 21:00 horas e não encontrei nem um arroio de água suja, fiz 87km em 8:30 horas de esforço físico naquelas estradas ruins. Quando já não tinha forças para continuar e o sol já se ia, me sobrava só meia caramanhola de água. Por sorte, digo muita sorte, os motociclistas deixaram cair na estrada uma banana e uma maçã frescos que carreguei com satisfação. A noite pude me deliciar com seu sabor e aplacar a sede com o suco farto, acompanhado de um tomate e duas tangerinas que carregava. Felizmente o dia estava meio nublado e não me desidratei como de costume. De toda a forma tive muito medo de passar mal, nunca fiquei com tão pouca água. No dia seguinte tive ainda que pedalar uma hora, até finalmente encontrar uma fonte.
Chegando em El Sosneado pude relaxar com um banho quente enquanto pensava em meu projeto. Confirmei que os passos estavam fechados pela neve e não poderia atravessar para o Chile. Parecia que meus planos tinham ido por água abaixo….
Pois bem, que são planos ou projetos? Nada mais que expectativas do futuro. Mas viver o presente é sempre muito melhor, já que não posso cruzar os passos, por que não simplesmente visitá-los? Por que não aproveitar o que tenho ao invés de reclamar do que que não posso conquistar?
Continuei meu caminho com este espírito aproveitando toda a beleza do lugar e a conseqüente abundância de tempo, assim sendo entrei em Las Leñas (que nem estava no projeto) só para ver até onde poderia chegar. Lindo!!! Super!!! Parecia que o inverno havia esperado por mim. Cheguei a pegar -5.3 Celsus pela noite.
Felizmente estou usando bons equipamentos (MANASLU E SNAKE) que me proporcionam bem estar em qualquer circunstância. Passei Las Leñas (mais de 2.200 metros de altitude), pedalei até as últimas casas de pastores e segui a pé cruzando trechos com neve até onde o vale ficava tão estreito que a neve fechava tudo. Incrível!!!
Voltei para a rodovia 40 e rumo ao sul passei por Malargue e parei por dois dias para ficar conversando com um casal da Nova Zelândia. Muito legal, eles vinham do Sul e eu do Norte, tínhamos muito para conversar e idéias para trocar. A cada quilômetro que eles pedalam, um patrocinador faz uma doação para a rede do câncer em seu país. Não é legal?!?! Apesar de ter o padrão Londrino, onde vivem já há um bom tempo, eles pedalam num estilo parecido com o meu e acabamos acampando juntos, eles diziam “Quanto mais economizamos mais tempo podemos viajar”. Silas (29) e Angela (31) saíram da terra do Fogo em 12/09/05, imagine o frio?!? Pegaram até neve no caminho. Eles querem ficar um ano viajando e pretendem chegar até Quito no Equador. Silas tem bastante experiência com viagens mas Angela está viajando assim pela primeira vez. Ele é treinador de triatlon, ela é fisioterapeuta e apesar de não ser acostumada com bike sempre praticou esportes. Pedalam em uma média muito boa e estão apaixonados por tudo o que o cicloturismo proporciona. Angela disse que nunca fez cicloturismo na Nova Zelândia, mas acha que deve ser muito bom. Veja só, ela vive no paraíso do cicloturismo e nunca experimentou! Puxa, já estou com saudades deles!…
Rumo ao Sul, passei por Bardas Blancas e Las Loicas onde encontrei pouca variedade de víveres para os vários dias que teria pelas montanhas. Praticamente sobreviveria com arroz, bolacha, 6 latas de patê, 3 cenouras e 4 “mandarinas” (tangerina)…. Mesmo assim saí em direção ao passo de Vergara (2.859 m), também conhecido como Planchón na Argentina.
Durante dois dias muito duros, pedalei morro acima. Muitas vezes empurrei a bike na areia e nas dunas. O interessante é que não é areia de um antigo oceano e sim de vulcão. Em 1932 houve uma grande erupção do vulcão Descabeçado Tico (ou Kisapu) que cuspiu tanta areia na atmosfera que o dia virou noite. Até em Buenos Aires se registrou partículas desta erupção. Rochas monumentais faziam os vales dobrar em cotovelos e logo se abriam em vales magníficos sempre cortados pelo Rio Grande. Não há muita gente, só os “Puesteros” as pessoas que tem uma casinha (chamada Puesto) e trazem as cabras para pastar no verão. Numa noite eu acampei no meio de um vale bem aberto todo salpicado de grandes rochas expelidas pelo vulcão. A noite já chegava de mansinho e dois jovens pastores passaram a cavalo e puxaram conversa.
Gabriel e Leopoldo não me pareciam preocupados com a vinda de Bush para o encontro em Mar Del Plata. Levavam grandes sorrisos no rosto pois as cabras estavam tendo “chivitos” e teriam que ficar espertos com o “Zorro” (raposa). Disseram que as cabras geralmente tem 1 ou 2 cabritinhos, mas se chegar a ter 3 eles tem que tirar um e levar para uma outra fêmea que tenha um só. “Afinal a cabra só tem 2 tetas!!!”
Apesar do frio (-7.3C) eu passei o Valle Noble e segui até o ponto onde a neve cortava a estrada. Ali acampei para seguir caminhando no outro dia. Subi muito, depois desci e finalmente cheguei na massa de neve que estava provavelmente há poucos km das Termas de Azufre, podia até sentir o cheiro do enxofre, mas tive que dar meia volta. Desci quase à mesma velocidade da subida e não parei em Las Loicas para descansar, só reabasteci e fui direto tentar o outro passo, Pehuenche (2.500 m). Este caminho estava ainda pior.
No começo era por que as máquinas tinham acabado de fazer a manutenção e a terra estava arenosa e fofa. Depois, era por que a estrada não tinha nenhuma manutenção desde o ano passado. Pedras caídas, vossorocas, tive que desmontar o equipamento da bike para poder passar os equipamentos um a um por sobre os obstáculos da estrada. Mais perto do topo, onde não chegam carros nem há pastagens para o gado, empurrei a bike por sobre vários “Badons”, enormes montes de gelo que cortavam a estrada por centenas de metros. Logo cheguei novamente aonde o vale se estreita e a neve tampa tudo de um lado ao outro do vale. É realmente muito bonito mas tive que voltar dali.
Comecei a gostar de ir e voltar pelo mesmo caminho. Vejo mais detalhes enquanto volto, parece até outro lugar. É incrível como a paisagem muda simplesmente por mudar o sentido que se caminha na estrada.
Retornando a Las Loicas, parei para descansar e aluguei um quarto da Sra. Mariela, a dona da vendinha. Não sei por que mas acabei sendo adotado pela família. Logo estava ajudando Vitor (o marido) a consertar o gerador de eletricidade e passamos um dia em Malargue onde conheci o resto da família. Uma gente incrível de beleza, simplicidade e pureza que já não se vê mais. Dava dó de despedir, mas afinal algum dia tenho que voltar para uma visita e talvez possa atravessar estes passos.
Novamente na estrada, pedalei até um entroncamento. À direita um caminho de terra, a esquerda um outro, supostamente com mais asfalto. Enquanto penso que caminho tomar, para ao meu lado uma viatura da polícia estadual. Advinha quem eram? Os motociclistas que deixaram as frutas!!! Legal poder reencontrá-los e contar a história de como fiquei sem água. Claro, não deixei de agradecer pelas frutas que eles deixaram cair e eu acabei encontrando, ao que me responderam:
– Não carregávamos frutas, não vimos nenhum veículo o dia todo, as frutas que encontrou foram um verdadeiro milagre meu amigo…
Nesta hora até eu fiquei espantado, só sei que aquela maçã foi a mais suculenta que já comi em toda minha vida.
Decidi seguir pelo caminho de asfalto, pois estava me sentindo cansado e com princípio de resfriado, um dia depois fiz uma parada de descanso em Barrancas divisa entre as províncias (estados) de Mendoza e Neuquén, onde começa oficialmente a Patagônia. Nem por isto as coisas ficaram mais fáceis, já que as subidas eram íngremes exigindo muito esforço. Tinha que planejar bem, pois não há abastecimento freqüente e apesar das extensões desertas busco sempre o lugar ideal para acampar, e se possível evitar alguns problemas como uma vez em que só consegui água barrenta pois o rio Grande recebera muita água do degelo e não havia outra para as pessoas beberem. Outra vez, encontrei um abrigo do vento junto aos álamos, entretanto não era o único a buscá-lo, a prova disto era a quantidade de cocô de animais a minha volta, de vez em quando dava um “pé de vento” que enchia a barraca com pó de bosta seca. O pior foi uma vez que de tão cansado tive que parar no meio de uma subida, o problema é que o solo era de pura laje e sem fincar as estacas da barraca, tive que enfrentar uma das noites de maior vento da viagem, felizmente tenho uma barraca MANASLU!!! Incrível, bravamente ela manteve sua forma e me abrigou inclusive contra o chuvisco no meio da noite.
Nem tudo é “roubada”, às vezes o caminho nos reserva belas experiências. Quando estava quase chegando em Chos Malal, encontrei dois pastores de cabras. Com um sorriso cordial me ofereceram um pedaço de chivito que assavam no chão. Tudo muito rústico apenas uma pequena fogueira e um espeto do lado em que o vento sopra, o pobre animalzinho de poucos meses de vida possuía uma das carnes mais macias e saborosas que já comi. Sorte deles que já tinha almoçado pois minha vontade era comer o espeto inteiro. Assim como eu, eles vagavam pelo campo auto-suficientes já há 4 dias. Como eu, carregavam em seus alforjes tudo o que precisavam. Mas não estavam numa viagem de aventura.
Don Geraldo tinha 68 anos de lida, um homem curtido pelo vento frio da Patagônia, já não enxergava bem e seus joelhos lhe traíam e o derrubavam várias vezes ao dia enquanto subia as pedras do morro. Me disse que chegou a ter 1.000 animais e os perdeu em uma única noite quando a chuva virou neve e a temperatura baixou tanto que nem as cabras resistiram.
– Eu cheguei a chorar como criança. Disse ele, um homem que fabrica seus próprios alforjes e calçados e que vive de ñaco plantado, colhido, moído e torrado em seu sítio.
Enquanto eu preparava o jantar ele levantava e sentava subia e descia o morro para evitar que a criação atravessasse a pista ou que, dispersa, fosse presa fácil para os “zorros”.
Quase 20 dias sem encontrar facilidades como cambio ou internet, em Chos Malal, fiquei em um camping por 5 pesos (menos de 2 US dólares). A região parece com o Brasil de 20 anos atrás, onde podíamos contar com um camping barato a cada cidade e tínhamos segurança para acampar. Chos Malal é um entroncamento para vários atrativos do norte da província de Neuquén e o camping é movimentado com o ir e vir de grandes viajantes de todo o mundo. Conversei com suíços e ingleses, mas foi a irmã Ernestina com uma excursão inteira de crianças que cantando vieram me convidar para “compartir a sena” (jantar) com elas.
Infelizmente já havia jantado (os argentinos costumam jantar muito tarde 21:00, 22:00 as vezes até à meia noite). De toda a forma, participei da alegre mesa e fotografei as crianças na mesa e nas barracas. A Irmã com aquele jeitão católico, logo disse:
– Por Deus!!! Veja, nós não tínhamos nenhuma máquina fotográfica para registrar o encontro e graças a Deus que está aqui e pode faze-lo!
– Que é isto Irmã… É só me dar seu endereço que eu lhe envio umas cópias por e-mail…. Não se preocupe!
Deus salve a Microsoft!!! Pensei eu. Não sei se foi um agradecimento Divino, só sei que na manhã seguinte o vento forte parou pela primeira vez desde que cheguei à cidade e segui rumo noroeste sem muito esforço. Com tempo de sobra podia me dar ao luxo de visitar mais lugares ainda que estivesse meio que na contramão como as Lagunas de Epulafquen. Alias, toda a região ao sul de Las Leñas até os lagos não é muito comentada nos guias de viagem apesar de sua beleza.
Tive três dias duros pedalando morro acima ladeando a Cordilheira do Vento. No último fiz míseros 28 km em 4 horas e fiquei acabado. Mas o pior foi a chuva que brindou a chegada. Felizmente o oficial Leiva da “Gendarmeria Nacional” foi bem legal e me deixou ficar nas dependências do quartel. O lugar é muito bonito, vindo dos passos do norte esta é a primeira vez que vejo florestas de altitude, infelizmente as nuvens não deixavam ver muito mais que o lago e um pouco de montanha coberta de neve que caiu a noite passada. Que fazer, além de continuar para o próximo passo?
Pelo mesmo caminho voltei em um dia até Andacollo, fiquei em mais um camping municipal, desta vez gratuito e reabasteci para seguir em direção ao passo de Pichachén (2.062 m). Através de caminhos pedregosos e íngremes cheguei a mais uma Gendarmeria. O clima não estava muito estável, mas pela primeira vez os gendarmes me disseram que poderia chegar até o passo, o limite de fronteira. Mas… infelizmente não poderia cruzar pois o passo não estava habilitado e as aduanas ainda não haviam sido abertas. Deixei meu equipamento no quartel e subi vazio. Realmente a estrada estava muito ruim e bem no final nem veículos 4X4 seriam capazes de chegar e só por isto é que o passo ainda não estava habilitado, afinal, quem dá importância a quem viaja de bicicleta?
A visão era impressionante. No passo a neve encobria o caminho até a altura das placas de trânsito. A leste e a oeste abriam-se vales enormes descendo para cada país e o vento forte querendo me devolver para a Argentina. Muito mais úmido o lado chileno me ameaçava com pesadas nuvens negras. Desci rápido logo depois das fotos.
Continuei rumo ao sul em direção ao próximo passo Pino Hachado (1.884 m). Este sim, tinha a certeza que estaria habilitado pois é uma importante ligação e é um dos poucos passos asfaltados nos dois países (digo, quase todo asfaltado). Entrava em uma nova região e comecei a observar uma nova vegetação. A partir dos 900 metros de altitude começam as florestas de Araucária Araucana, ou Pehuén na língua Mupuche, uma espécie pré-histórica (período Cretáceo) que é “mãe” do “Pinheiro do Paraná” (Araucária Angustifólia).
O asfalto foi bem até a aduana, onde pela primeira vez carimbei minha saída no passaporte e encarei o “ripio” até a fronteira com o Chile, onde além do asfalto perfeito o dia ensolarado me brindava com 180 graus de vista limpa para vários vulcões chilenos. Foi bom aproveitar o clima, pois seguiram-se 3 dias de chuva diuturna. Acampei selvagem num belo lugar ao lado de um rio e só saía da barraca para ir ao banheiro, a chuva não dava trégua e para piorar a temperatura foi baixando a 1 grau, 0 e -1 grau quando virou neve. Nada mais apropriado, afinal a localidade se chama Serra Nevada, mas ninguém merece 3 dias dentro da barraca!
Felizmente tenho um tipo de cadeira em que posso me sentar confortávelmente e ler um livro dentro da barraca. Como dizia meu amigo Ernani “nunca estamos sós quando temos um bom livro” e assim li a “Breve História do Povo Argentino” inteirinha. Claro, ainda pude escutar pelo rádio todos os pontos básicos das plataformas políticas dos candidatos a presidência chilena. Desde esta época me simpatizei por Michel Bachelet. O clima ainda estava chuvoso, mas após 3 dias não tinha o que comer e apesar de quentinho e confortável em minha barraca MANASLU tinha que continuar.
No caminho de Curacautin atravessei o túnel Las Raices, o maior da América do Sul (4.557 m de comprimento). Como não havia sinais proibitivos entrei no túnel de mão única sem perguntar nada, do outro lado levei uma bronca básica dos administradores e é claro dei uma de “João sem braço”.
Já estava pedalando há mais de um mês sem me preocupar com datas ou horários, o mais importante era meu estado de espírito e as regras da natureza como o vento e a chuva. Baseado nestes princípios decidia seguir ou ficar. Pela primeira vez tinha uma data: 07/12 e um local: Aeroporto de Temuco no Chile, o ponto de encontro com meu amigo Frank.
Frank é um alemão que encontrei pedalando por uma estrada do Marrocos em 2003. Seguíamos na mesma direção e fizemos uma pequena travessia do Saara juntos. Tínhamos velocidade e interesses parecidos e acabamos viajando juntos duas semanas. Desde então ficamos planejando uma outra viagem. Em 2004 estava tudo certo, ele já tinha até comprado a passagem para a gente viajar pelo Chile mas teve que desistir pois eu havia começado meu tratamento contra o câncer. Mesmo assim não desistimos da ideia e finalmente lá estava eu esperando ele no aeroporto.
Dusseldorf, Madri, Santiago e Temuco, após mais de 17 horas de vôo o Frank pegou a bike que veio toda montada no avião, colocou os alforjes e saímos pedalando naquele dia frio e chuvoso. Taí um grande companheiro!!
Muita história para contar, planos de trajeto, um dia de aclimatação e seguimos nosso caminho para o passo de Icalma (1.303 m). Primeira parada em Melipeuco, onde visitamos no P.N. Conguillio Los Paraguas o Vulcão Llaima (3.125m) e a Laguna Verde. Uma região cheia de cicloturistas e famosa por servir de cenário para um especial sobre dinossauros, feito em animação pela BBC (me parece que o Fantástico veiculou esta série). À parte da fama, é uma sensação diferente pedalar por entre montanhas de magma, de cor negra absoluta e textura áspera. Com uma fronteira muito clara observamos os caminhos da lava em negro e as florestas poupadas em verde. Só pedalei assim no P.N. Crateras da Lua – USA, mas sem a beleza do vulcão nevado.
Os números nem sempre dizem tudo. Apesar do passo ser mais baixo, ao entrar no Chile perdi muita altitude e para piorar o “ripio” chileno é feito com pedras grandes, um horror para bikes principalmente nas subidas. Levamos quase um dia todo empurrando a bicicleta para fazer 12km. As Araucárias voltaram a aparecer, mas desta vez junto com uma exuberante floresta devido à maior umidade do lado chileno. Papéis, aduana e novamente asfalto novinho descendo para o lago de Aluminé na Argentina. Acampamos na margem leste. Enquanto preparávamos o jantar e tomávamos uma garrafa do bom vinho nacional podíamos apreciar as mudanças de cores da paisagem devido ao por do sol. Este foi o mais belo camping selvagem da viagem.
Minhas impressões bateram com as de Frank. A Argentina se mostrava mais interessante para viajar de bicicleta. As grandes extensões desertas davam um ar mais selvagem que facilitava os campings livres. As pessoas eram ainda mais receptivas que no Chile e tudo era muito mais barato. Sendo assim decidimos fazer os passos sem entrar no Chile evitando o mau “ripio” e a perda de altitude. Ao retirar o trajeto dentro do Chile nosso roteiro ficou ainda mais folgado, pudemos descansar um dia e no outro visitar o lago Rucachoroy. A comunidade Mapuche dá um colorido a mais ao caminho e ao lago, pois pudemos observar sua forma de trabalhar bem como os belos artesanatos.
Por um vale estreito e intrincado descemos o rio Aluminé admirando o contraste da vegetação das margens e o pampa seco que se forma no platô logo acima.
Nosso próximo passo se chama Mamuil Malal (1.253m). O antigo nome oficial era passo Tromen, referência ao lago perto do passo. Entretanto, desde épocas remotas, quando a Patagônia tinha maior relacionamento com o Chile devido a distância de Buenos Aires, os chilenos chamavam a região argentina de Mamuil Malal que é um tipo de cercado de animais em Mapuche. Depois virou o nome de uma fazenda gigantesca que se estende pelos dois lados da estrada por 50 km.
Claro, não havia outro lugar para acampar e pedimos para o próprio “patron”, Don Bertil. Seu avô veio da Suécia e comprou as terras e construiu uma belíssima fazenda com total auto-suficiência, tem até um velho gerador eólico. Hoje Don Bertil vê o asfalto cortar sua propriedade enquanto joga pólo com seus filhos (um verdadeiro esporte nacional por aqui). Tranqüilo e simpático, após contar belas histórias ele nos indicou um lugar para que ficássemos junto aos álamos nos protegendo do constante vento.
Perto do passo começa o P.N. Lanin, o nome do vulcão de 3.776 m que está logo ao lado da aduana. Do outro lado um camping chamado “agreste”. Nestes lugares podemos contar somente com água e nada mais, entretanto é grátis e nem por isto o lugar cheira mau ou tem um monte de lixo, bem ao contrário. Este equilíbrio quase não existe no Brasil, ainda mais se falar-mos em Parque Nacional. Em nosso país está cada vez mais difícil de ficar junto à natureza e simplesmente apreciar a beleza que ela nos dá de graça. Uma visão equivocada de desenvolver o turismo nos obriga a gastar e ir distribuindo dinheiro como se estivéssemos em um parque de diversões pagando por cada brinquedo que entramos. Quem já foi para Brotas-SP sabe do que estou falando.
Desta forma caminhamos até o lago Tromen que mais parecia um mar, não só pelo tamanho mas pelas ondas de quase um metro que se formavam pelo vento forte. Aproveitando o impulso do vento que geralmente sopra para o leste descemos em direção a Junín de los Andes. Esta foi a primeira cidade onde sentimos que estávamos em uma região de veraneio. Só não haviam muitos turistas, mas disseram que o forte é a partir de 2 de janeiro.
Por estradas pouco movimentadas seguimos para o passo Carirriñe (1.180m), que foi o mais selvagem de todos. Para se ter uma idéia a aduana fica a quase 50 km do passo, todo o resto fica meio que abandonado. A estrada não é tão ruim mas se vê que não passa mesmo muita gente, apesar da beleza do caminho que segue subindo e descendo sempre costeando os vários lagos, Curruhue Chico e Grande, Laguna Verde e Carilafquen. É um cenário de beleza impressionante onde a natureza brinca com apenas três cores: O azul do céu, o branco do topo das montanhas e o verde dos lagos e das florestas exuberantes. Como se não bastasse toda esta beleza ainda há outros atrativos como as termas e um caminho feito pela lava do vulcão Colorado que entrou em erupção em 1.600. A cada dezena de quilômetros uma área de camping mais bonita que outra e tudo isto grátis e seguro. Uma moça com sua filha acampavam sozinhas na Lagoa Verde enquanto o marido estava pescando. Nem se pensa em perigo. Para mim este foi o passo mais bonito!
Continuando a viagem, já quase chegando a San Martin de los Ande,s passamos pelo lago Lolog. Nossa como são belos os lagos!! Todos com águas cristalinas de cores que passam de verde à azul conforme a luz do dia reflete, mas, de perto são sempre translúcidos e nos mostram até as pedras do fundo. Ficávamos horas observando sem cansar. Chegamos na cidade na tarde de 24 de dezembro e logo vimos que estávamos bem servidos de tudo o que uma cidade turística pode nos dar como bons restaurantes e tudo o mais. Natal e meu aniversário, decidimos trocar o cardápio de quem tem que carregar o menu para até 4 dias na estrada por um bom restaurante.
Nos instalamos sem pressa na “Hosteria Las Lucarnas” perto do centro e já a noitinha quando saímos para buscar um bom restaurante vimos Maria a dona da pousada preparar a mesa para cear sozinha com uma amiga. Sinceramente fiquei até meio triste com a cena. Entretanto, Maria, falante e alegre, disse que apesar da cidade ter muitos restaurantes não seria fácil encontrar uma vaga sem ter feito uma reserva para a ceia de Natal. Disse ainda que qualquer problema poderiamos voltar e compartilhar com elas. Bem, eu gostei do convite e do carinho, mas imaginava meu Natal um pouco diferente. Saímos confiantes e buscamos as melhores casas e de preferência com assado. Nossa! Só havia um menu especial de natal muito caro e mesmo assim tudo lotado.
Depois de visitar uma meia dúzia deles já estávamos querendo fazer qualquer negócio, cheguei a dizer:
– Veja… A gente janta agora que ainda é cedo e depois vem os argentinos mais tarde e jantam de novo…
Sempre a mesma reposta mecânica:
– Me desculpe, mas sem reserva não dá.
Continuei:
– Tudo bem, o senhor me faz um marmitex e a gente vai comemorar o natal e meu aniversário na praça, pode ser?
A resposta dele quase me irritou.
– Desculpe mas com o menu reservado, o planejamento da comida é exato. Não dá…
A falta de sensibilidade chegou a deprimir, foi então que o Frank disse:
– Bem, vamos passar o Natal na pousada com a Maria.
Pegamos umas garrafas de vinho e lá fomos nós nos juntarmos à mesa. Mais tarde, um casal de alemães Bernardo e Cristina tiveram a mesma experiência e a mesa ficou cheia e barulhenta com Inglês, alemão e espanhol, uma verdadeira festa. Maria, que é descendente de italianos, calculou a comida para duas pessoas, mas comemos em seis e ainda sobrou. Maria e eu tivemos a mesma impressão que se resume em uma frase que ela disse:
– Há tempos não vivia um natal tão gostoso em que sentia tão forte seu espírito, a fraternidade!
Em situações assim, vejo o quanto cada ser humano é especial. Vejo que o Universo realmente cuida de nós e de nada adianta preocupar-se muito com o futuro já que afinal “o amanhã guarda seus cuidados”.
Com um ano a mais nas costas (39), saímos para o passo de Hua Hum (620m). O mais baixo e o menos interessante. O caminho está bem longe do lago Lacar, a única coisa que vimos foram subidas e descidas íngremes, pedras soltas, poeira e muita, mas muita mutuca. Não dava nem para fazer uma parada de descanso. Felizmente ao final há belas áreas de camping ao lado do lago. Desta vez resolvemos entrar no Chile mas simplesmente para fazer uma travessia de ferry pelo lago Pirehueico. Seis dólares com bike e tudo, mesmo com o tempo nublado valeu a pena. O lago é bem estreito, as matas parecem intocadas e os morros surpreendem pela forma que sobem, íngremes, a partir da margem. Imagino como deve ser belo com o dia claro!
De volta a Argentina decidimos pegar um barco para San Martin de Los Andes através o lago Lacar. Melhor que pela já comentada estrada horrorosa! Tudo estava planejado, depois daquele Natal tão especial Maria nos convidou para um cordeiro assado na lareira da pousada no último dia do ano. Que delícia!!
Perto da meia noite já estávamos na praia do lago para ver os fogos. Lindo!! Uma festa regada a música brasileira, para minha surpresa. Em primeiro de Janeiro não conseguimos sair muito cedo por causa da ressaca básica, mas foi um dia de encontros muito especiais. Primeiro foram Mariano e Mercedes, um romântico casal de argentinos viajando de bicicleta pelos sete lagos pouco antes de seu casamento. Depois o interessantíssimo Hans, alemão viajando com um super Land Rover todo preparado como motor home, só não tinha chuveiro. Ele é fotografo de viagens, trabalha para uma editora de guias e também está fazendo fotos para um guia da UNESCO .
Para finalizar, pouco antes de terminar a pedalada, encontrei ao longe nossa bela bandeira nacional flamulando em meio a um grupo de quatro bicicletas. Era a Fabiane de Curitiba junto com seus amigos. Eu sabia que eles pedalariam por esta região e sabia que de alguma forma eu iria encontrar com eles. E foi assim, sem qualquer plano no meio da rodovia, justamente como há um ano atrás quando os encontrei perto do Caraça em MG enquanto faziam a Estrada Real. Nossa, estava demais!! Oito bicicletas encostadas ao lado da pista, o vento era frio e ameaçava vir muita água, mas ninguém se movia dali. Os oito cicloturistas se abraçavam e cumprimentavam falando sem parar… Eu nem me continha, não sabia qual a última vez que falara português. Um dia muito especial, infelizmente tínhamos que continuar em caminhos opostos.
Os encontros não eram exatamente uma coincidência, na verdade existe uma explicação. Acabávamos de entrar na região dos Sete Lagos a região mais bela por km rodado de toda a viagem.
Somando-se a isto começavam as férias dos argentinos e os caminhos de terra viraram um verdadeiro congestionamento de carros e bicicletas. Vi muitos grupos argentinos de bicicleta e era fácil de reconhece-los: geralmente levavam uma grelha de ferro na bagagem e ou uma cuia com garrafa térmica para chimarrão. Aliás, vi muitos mochileiros com a tal da grelha de ferro nas costas. Cada um tem uma visão do que é essencial.
Acampamos no lago “Hermoso” e no lago “Chico”. Mas acabamos não acampando no lago Falkner, eles são todos bem pertinho um do outro e em muitos o camping é livre mesmo estando dentro do P.N. Arrayanes. Quando chegamos em Villa la Angostura a chuva chegou junto. Algo parecido com uma ducha diuturna em cima da barraca. Um saco! Em meio a este clima adverso, em um jantar com Andre e Paula, motociclistas de Blumenau, começamos a pensar sobre o final de nossa viagem de bike.
Nunca tivemos dificuldades para definir qualquer roteiro e dentre as opções de tempo, dinheiro e logística, acordamos que deixaríamos de ver a movimentada Bariloche e atravessaríamos para o Chile pela última vez aproveitando um pouco mais deste país. Com clima chuvoso atravessamos o último passo da viagem, Cardenal Antonio Samore (antigo Puyehue, 1.321 m). Em meio à densa floresta muitas vezes intocada, chegamos às termas e ao lago Puyehue. Além do agradável calor e das propriedades terapêuticas das termas, a estrada costeando o lago nos brinda, a cada curva, no fundo da paisagem, com uma nova cachoeira como um fio de prata cortando a mata densa. Aos lados, os vulcões Puyehue (2.240m), Casa Blanca (2.240m) e Osorno (2.652m) e no meio o Cerro Puntiagudo (2.190m).
Um descanso em Ensenada, nas margens do lago Llanguihue e entramos no último atrativo da viagem, o Estuário Reloncavi. A quase oitenta quilômetros da baía a água é salgada, os morros escarpados e há salmoneiras para todos os lados. Mas, o que diferencia dos outros cinco países do mundo que possuem fiordes, são, sem dúvida, os vulcões.
Por seis semanas passamos as 24 horas do dia juntos e agora era hora de partir. Frank pegaria um avião em Puerto Montt e eu um ônibus. Depois de 6 semanas juntos em 17 de Janeiro deixei o Frank no aeroporto. Em meio a um forte abraço e vários planos de novas viagens nós nos despedimos. Em 18 de Janeiro eu montava em um ônibus para ficar 3 dias na estrada até chegar de volta a Ipaussu , minha cidade natal.
Pela janela do ônibus apreciava o infindável pampa argentino enquanto digeria as impressões e vivências desta região tão bela e ainda pouco explorada. Ainda estava cansado, mas já começava a fazer planos para a próxima.
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